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lyrics

O trambolhão do vison

O galo cocoricou quando os primeiros raios de sol se estatelaram no chão molhado da aldeia, espelhando a luz anunciadora da visita dos senhores importantes. Vinham da centralíssima cidade, excretados de gabinetes com prolixas nomenclaturas,
acompanhados pelos descentralizados e obsequiosos serviços dos respetivos burgos, engalanados de pompa governativa e investindo as gravatas contra as assimetrias regionais. “Coitados, sabem lá o que é o futuro se não formos nós a mostrar o caminho... Onde é que estamos, afinal? Ainda falta muito?” Chegaram os carros puxados por outros bois, lustrosos e diplomaticamente estacionados no meio da estrada. Uma aliteração ensaiada de abotoamentos, sorrisos, deferências de ocasião e temerários olhares circundantes disfarçava o nervoso, mais miudinho que grão de espiga em tempo de seca. “Pois, pois, vamos lá então ver o que se pode fazer, não é?” A ovelha levantou os olhos sonolentos, o pastor cofiou o burel e ajeitou o cajado ao côncavo do peito. O séquito de casacos monocolores, sapatos engraxados, vincos nas calças, relógios de pulso e botões de punho enxurrou finalmente rua abaixo. Lá no meio sobressaía uma madame de vison castanho – animal morto ou talvez imitação, o que importa é o exotismo. Bamboleava de indignação nos seus saltos altos de agulha. “Ora agora, que ruas estas! Mas ainda aqui não chegou o alcatrão do p’ogresso?” O lajedo de granito,onde antes mestre Aquilino retratou mulheres estrelouçando tamancos a caminho do campo, era agora puncionado por saltos altos de mulheres no campo perdidas.
E zás, catrapumba!, uma perna primeiro, a outra em solidariedade, escancharam-se e a gravidade fez o resto - bendito senhor dos céus que nos criaste com fofos traseiros para compensar o défice de elegância! Um zumbido de indignação contagiou o grupo, que se acotovelou em redor do vison trambolhado, assumindo instintivamente uma formação de defesa contra a desgraça do mundo rural. Estava ali, bem patente e à vista de todos, os malefícios da baixa densidade, o perigo da vernaculidade, as traiçoeiras esquinas do património romantizado, enfim, o desconhecido e o desconchavo. “Pavimente-se!” “Nivele-se!” “Ordene-se!” “Candidate-se!” Levantada a madame, apoiada num chofer, lá seguiu ela, qual olharapo desengonçado, pernas esterlicadas como um pechisbeque de Dalí, afogueada pelas ruas estreitas, nauseada do mijo das reses, muralhada por horizontes ondulantes e montanhosos, claustrofóbica de tanta interioridade. “Ai, preciso de water.” Seguindo como um batalhão emboscado, o grupo dos senhores importantes pasmou com a terra fértil e cultivada. Estacaram embasbacados no limite da pedra como se estivessem ante um oceano sem nome. Rocegaram os casacos em murmúrios negociados, até que um fez do chispe uma nau e atravessou os camalhões em três intrépidas passadas. Os outros esbugalhavam os olhos e descaíam os beiços perante a coragem descobridora – decerto seria descendente de um egrégio avô. O herdeiro agachou, piscou um olho e com o outro mediu, espetou um dedo por entre os torrões húmidos e, finalmente, soergueu-se gravemente. “É orgânico.” O grupo encolheu-se sincronizadamente como cardume acossado por predador. “Horror!” “Não é possível!” “Afinal, tem vida!” “Vai daí até são autónomos e sabem o que fazem, querem ver!” Era inadmissível. Estava decidido. Não se enquadrava tal situação nas reformulações regionais dos planos estratégicos de alavancagem smartificada do desenvolvimento sustentado e disruptivo desencaixotado das mais brilhantes mentes políticas do gabinete climatizado do novo ministério. Há que reinventar, diziam. Isto não é o futuro, protestavam. Desenhe-se a régua e esquadro, alvitravam, tal como se fez além-mar. Colonizar não é uma geografia perdida em mapas longínquos, é uma mentalidade arreigada nos néscios cascos dos usurpadores.

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from O Corpo no Sentido Contr​á​rio, released May 10, 2023

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