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O Corpo no Sentido Contr​á​rio

by Bruno Ramos & João Clemente

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1.
Montanha 01:30
MONTANHA Há na montanha a recordação do tempo De um mar antigo crespado pelo vento Submersos ambos nas tardes sanguíneas Do fértil estio invocando as gramíneas. Na pedra imensa a fundura sólida da terra Nos cumes rogando ao alto o nome da serra Pedindo a consumação da vida entregue Ao resguardo da palavra que não se negue. Herdamos da terra a fragilidade do barro Um destoado tom de vida bizarro Feito coragem pelo impulso do horizonte Que nos impele a erguer andar e ser ponte.
2.
O que vais tu comer, Manuel? O Manuel é um habitante do Pinhal Interior, aquele que ardeu quase por completo este verão. O Manuel tem 70 e poucos anos e no seu terreno tinha uma horta e alguma criação, videiras das quais todos os anos espremia um orgulhoso vinho, oliveiras que tinha plantado com o seu pai e avô, e umas colmeias às quais podia ir em mangas de camisa porque as abelhas o conheciam desde sempre. Ali no seu terreno, ao lado da casa agora sem janelas e telhado caído, havia também um anexo onde guardava alfaias agrícolas e um curral para meia dúzia de cabras. Sobra uma, que escapou miraculosamente, as outras foi dar com elas carbonizadas num caminho que sempre haviam feito e para o qual instintivamente fugiram sem perceberem que iam em direção ao abraço do fogo.Medronheiros também não há e cogumelos este ano decerto não vão nascer. Talvez nem nos próximos anos. E agora o que vais tu comer, Manuel? Já não terás couves pelo Natal, por isso também não te deverá fazer falta o azeite para temperá-las, abundantemente como gostavas, vertido dos dois garrafões que as tuas oliveiras produziam todos os anos. A horta é cinza, a tua pele é fuligem, a paisagem silêncio. Mas lá fora há muito barulho, vindos do exterior sucedem-se os carros e fatos pretos de passou-bem consternado e flashes ruidosos, dizem muita coisa muito alto, virados para as objetivas, de costas para ti, e falam com gestos largos que não percebes. Não percebes, Manuel? Então não vês que vem aí a recuperação, os planos, as medidas e os séquitos técnicos, a sobranceria estratégica e a solidária condescendência? É a mobilização nacional, homem! São pessoas que nunca pensaram nisto e que agora pensam demais. Vamos, em frente, que agora é de vez! Estamos a trabalhar para o país, não podemos olhar só para a tua horta. O que vais tu comer, Manuel? Entretanto aceita lá a caridade, veste o que não é teu e come o que te põem à frente. De qualquer maneira, Manuel, tens de perceber que esse é o plano em curso, é o mundo a girar e este fogo veio pôr a nú a roldanazinha que nós somos. Vocês aqui são muito poucos. E velhos, ainda por cima. Está toda a gente nas cidades e são cada vez mais os que para lá querem ir. É uma tendência mundial, o que se há-de fazer? Lá são mais controláveis, percebes? Ninguém tem hortas, nem sabem o que é, por isso comem da mão do dono... perdão, da prateleira. Nas cidades quanto mais prateleiras mais liberdade de escolha, confundem solidão com individualidade e inebriam-se de prazer para enganar o medo. Não percebes o que te digo, Manuel? Pois, não és moderno, não tens apps no bolso nem és um empreendedor resiliente - eras autónomo, mas isso hoje não é um chavão, não produz soundbyte. A única coisa que sabes é quando podar e enxertar árvores, cultivar alimentos, fazer queijo e pão, falar com as abelhas e com as cabras, colher ervas para chás de diversas maleitas, levantar um muro de pedra e esculpir cepos, olhar o céu e provando o ar adivinhar o tempo que aí vem, pressentes os ciclos da terra e antecipas todos os seus animais, conheces os humores do rio e as zangas no café da aldeia, sabes que entre o céu e a terra estás tu e tudo o que deles em ti conflui para se renovar. Mas para que serve isso? Agora, para nada. No entanto, se tiveres sorte, talvez alguém esperto te integre na estatística de um qualquer projeto smart. Ainda melhor: talvez sejas chamado para mimicar frente a turistas uma destas coisas que sabias. É a moda e é melhor do que nada, que é o que agora tens, bem vistas as coisas. Aguenta lá a fome, engole as lágrimas e dáte por feliz de estares vivo. Podias ter-te evaporado, que ninguém te vinha acudir. Sabes que isto de proteger pessoas e bens é uma maçada, importante é controlar o défice e sairmos do lixo, nem que para isso tenhamos de te atirar para lá a ti, Manuel.
3.
Seara 02:45
seara não tenho sono porque tu estás aí, de boca e olhos abertos nos meus. o tempo é escasso para todo este início, por isso não tenho sono. entraste na minha vida caminhando por uma seara. o sol estendeu-se em delicada filigrana sobre o teu corpo, amadurecendo os frutos suspensos. és a promessa da humana ancestralidade do desejo. entraste na minha vida por entre o rio e o bairro alto, quando a luz se confunde com a noite paralela ao tejo. O teu carro desenfreado como um feixe azul - celestino – lançando pelas janelas música italiana a lisboa. ah, essa lisboa que nos deitou numa cama de colinas e elétricos chamados desejo, miradouros até ao derradeiro mergulho do sol incendiando as nuvens sobre a ponte. toco-te. cá estamos nós, cidade, prontos para o fim dos tempos. e depois partiste para o outro lado do mundo. procuro-te em redor da mesma geografia sul ponte lisboa, vasculhando as madrugadas sobre a água. devo levantar-me de onde estou e atalhar pelo caminho que sobe em direção às serras, para longe do rio. que guardo eu? o corpo no sentido contrário. o lampejo dos dias humedecidos em chá e línguas de gato. lançámos os seguintes recados ao vento de lisboa: desta paragem entre duas margens habitada não arredamos pé. nem fechamos os olhos. duas margens uma seara outra sonho pelo meio a água. subitamente no verão nós lambemos as cores e as texturas como condenados, pintámo-las como artistas e como amantes emaranhados nos lençóis da cidade, escondemo-las. poemas cinema e fantasmas nas esquinas de lisboa. o outono esbraceja agora. no ar já não se sente o teu perfume de seara em agosto. estou imóvel depois do som que habitou as portas entreabertas e não saberei que mala fazer ou que casa habitar enquanto sobrar tanto espaço para desarrumar as tuas coisas.
4.
O Eterno Feminino Exposição “Estelas de Cal” Pintura: Gabriel AV | Fotografia: Margarida de Albuquerque Rodrigues Num tempo marcado pela diluição do conceito de género e pela ditadura de uma permanente felicidade, Gabriel AV e Margarida de Albuquerque Rodrigues (MAR) assumem o corpo com o seu sexo e as suas máculas. E fazem-no sem qualquer tipo de concessão a preconceitos de horário nobre, a pudores de sacristia, a facilitismos de pacotilha, ou a qualquer outro tipo de “ismo”, diga-se de passagem. Aqui está o corpo nu, exposto, visceral e sexual, vivido e marcado, suportando a sua bagagem emocional em equilíbrio sobre o caldo simbólico da mitologia. O corpo como campo de batalha do amor, na busca pela redenção. Ou simplesmente tentando encontrar a saída do seu próprio labirinto, em direção à luz. As imagens desta exposição lançam uma ponte para a compreensão do outro através da nossa própria história. Vem até mim, meu amor, e rasga uma abertura na minha carne, da boca até ao sexo, por onde se vislumbre o antigo confronto da criação: homem e mulher, eu e tu, a minha vida na tua. Esta é uma exposição assumidamente feminina, no sentido arquetípico e dialético mais ancestral do termo. Nesse contexto só pode existir na sua dualidade com o princípio masculino, na eterna dança da criação do mundo entre homem e mulher, Adão e Eva, Xiva e Shakti, Yin e Yang, Gabriel AV e MAR, o falo e a vagina, o esperma solar e impulsionador recebido na gruta lunar, no escuro útero onde se gera o mistério da vida. “A mulher é o futuro do homem”, disse o poeta francês Louis Aragon. Significa que essa força masculina, bruta, material, terrena e tradicionalista na sua quase cega preservação da ordem e dos valores, precisa de entrar em contacto com as suas emoções mais profundas, o seu lado escondido, uterino, lunar – feminino, portanto – para quebrar padrões, libertar-se, evoluir e poder ascender aos céus. O feminino e a sua promessa de amor representam o desejo sublimado na vontade de transcendência, cuja viagem pode levar-nos ao mais alto dos cumes, como esmagar-nos sob as profundezas da montanha.Carl Jung escreveu que o feminino representa “o anima inconsciente, as tendências psicológicas da psique, como por exemplo, os sentimentos e os humores indefinidos, as intuições proféticas, a sensibilidade ao irracional, o sentimento da natureza, a capacidade de amor pessoal (...), a propensão para fazer observações mordazes, venenosas, efeminadas e a menosprezar tudo.” As pinturas de Gabriel AV representam esta transbordante dicotomia e as fotografias de MAR questionam quanto de feminino existe em todos nós. Esse é o encaixe primordial do mundo, a geração de toda a vida e o espaço liminar onde se desenrolam as tragédias da condição humana na busca do amor, da harmonia e da redenção. Diz-me, meu amor, este sangue que escorre entre nós é ainda o inocente e puro sangue da nossa desfloração ou verte já de uma ferida aberta por um dos nossos gestos? Cada um de nós é o palco dessa mesma e única história. Cada um de nós, à sua maneira, terá de encetar a “viagem do herói” e navegar por entre os escolhos das relações e sobreviver ao niilismo e à amargura, as duas sereias que, com o seu murmúrio encantatório, nos querem prender num leito estagnado. É o que faz Gabriel AV, lançando-se à borrasca com as velas desfraldadas do seu coração. “Esta exposição é o cemitério, privado e íntimo, das mulheres que amei, para as enterrar definitivamente e podermos todos descansar em paz”, diz ele. Mas não se pense que vimos aqui assistir a um sorumbático funeral ou a um maniqueísta ajuste de contas. Bem pelo contrário. Somos convidados a entrar no seu pessoalíssimo panteão para assistir a um vibrante caleidoscópio de purificação. O artista expõe-se na tentativa de compreender. Recorre à mitologia grega porque é nesse fundo metafórico que habita toda a complexidade da natureza humana, com as suas incongruências e contradições, o mais belo e puro como o mais malévolo e demoníaco. Sem juízos de valor, sem certo ou errado. Cada quadro representa uma mulher, um amor, uma história exorcizada através da sua carga simbólica. Serão todas uma só? Facetas de uma única mulher? Nos espaços vazios dos trípticos desta exposição debruçamo-nos sobre o abismo da revelação. É preciso olhar, olhar profundamente, como Gabriel AV o faz, para se perceber as delicadas nuances que os unem a todos. Pousa a tua mão na minha, meu amor, não sei já se este calor que me anima é do nosso abraço ou do coração palpitante que arrancaste ao meu peito.Que liberdade se sente no meio destas imagens! Que volúpia de sentidos nos arrebata numa explosão de emoções enfim desencarceradas! Não há quem não se identifique ou não reconheça outros nestas imagens. Não pode haver quem não se sinta exposto e desnudado em algum secreto episódio ou pulsão marginal. Caso contrário, saia imediatamente desta sala, pois não é já mais do que um “cadáver adiado”2 tão somente aguardando por um definitivo banho de cal na alma.
5.
Tudo é respiração O gelo que avança As estações que mudam O sangue expelido e inspirado. Não existe separação Entre a espuma do mar e as nuvens O recorte da falésia no céu A voz no vento A sombra daquilo que sou. Relembro o início de tudo Nas constelações suspensas das minhas pálpebras fechadas.
6.
O trambolhão do vison O galo cocoricou quando os primeiros raios de sol se estatelaram no chão molhado da aldeia, espelhando a luz anunciadora da visita dos senhores importantes. Vinham da centralíssima cidade, excretados de gabinetes com prolixas nomenclaturas, acompanhados pelos descentralizados e obsequiosos serviços dos respetivos burgos, engalanados de pompa governativa e investindo as gravatas contra as assimetrias regionais. “Coitados, sabem lá o que é o futuro se não formos nós a mostrar o caminho... Onde é que estamos, afinal? Ainda falta muito?” Chegaram os carros puxados por outros bois, lustrosos e diplomaticamente estacionados no meio da estrada. Uma aliteração ensaiada de abotoamentos, sorrisos, deferências de ocasião e temerários olhares circundantes disfarçava o nervoso, mais miudinho que grão de espiga em tempo de seca. “Pois, pois, vamos lá então ver o que se pode fazer, não é?” A ovelha levantou os olhos sonolentos, o pastor cofiou o burel e ajeitou o cajado ao côncavo do peito. O séquito de casacos monocolores, sapatos engraxados, vincos nas calças, relógios de pulso e botões de punho enxurrou finalmente rua abaixo. Lá no meio sobressaía uma madame de vison castanho – animal morto ou talvez imitação, o que importa é o exotismo. Bamboleava de indignação nos seus saltos altos de agulha. “Ora agora, que ruas estas! Mas ainda aqui não chegou o alcatrão do p’ogresso?” O lajedo de granito,onde antes mestre Aquilino retratou mulheres estrelouçando tamancos a caminho do campo, era agora puncionado por saltos altos de mulheres no campo perdidas. E zás, catrapumba!, uma perna primeiro, a outra em solidariedade, escancharam-se e a gravidade fez o resto - bendito senhor dos céus que nos criaste com fofos traseiros para compensar o défice de elegância! Um zumbido de indignação contagiou o grupo, que se acotovelou em redor do vison trambolhado, assumindo instintivamente uma formação de defesa contra a desgraça do mundo rural. Estava ali, bem patente e à vista de todos, os malefícios da baixa densidade, o perigo da vernaculidade, as traiçoeiras esquinas do património romantizado, enfim, o desconhecido e o desconchavo. “Pavimente-se!” “Nivele-se!” “Ordene-se!” “Candidate-se!” Levantada a madame, apoiada num chofer, lá seguiu ela, qual olharapo desengonçado, pernas esterlicadas como um pechisbeque de Dalí, afogueada pelas ruas estreitas, nauseada do mijo das reses, muralhada por horizontes ondulantes e montanhosos, claustrofóbica de tanta interioridade. “Ai, preciso de water.” Seguindo como um batalhão emboscado, o grupo dos senhores importantes pasmou com a terra fértil e cultivada. Estacaram embasbacados no limite da pedra como se estivessem ante um oceano sem nome. Rocegaram os casacos em murmúrios negociados, até que um fez do chispe uma nau e atravessou os camalhões em três intrépidas passadas. Os outros esbugalhavam os olhos e descaíam os beiços perante a coragem descobridora – decerto seria descendente de um egrégio avô. O herdeiro agachou, piscou um olho e com o outro mediu, espetou um dedo por entre os torrões húmidos e, finalmente, soergueu-se gravemente. “É orgânico.” O grupo encolheu-se sincronizadamente como cardume acossado por predador. “Horror!” “Não é possível!” “Afinal, tem vida!” “Vai daí até são autónomos e sabem o que fazem, querem ver!” Era inadmissível. Estava decidido. Não se enquadrava tal situação nas reformulações regionais dos planos estratégicos de alavancagem smartificada do desenvolvimento sustentado e disruptivo desencaixotado das mais brilhantes mentes políticas do gabinete climatizado do novo ministério. Há que reinventar, diziam. Isto não é o futuro, protestavam. Desenhe-se a régua e esquadro, alvitravam, tal como se fez além-mar. Colonizar não é uma geografia perdida em mapas longínquos, é uma mentalidade arreigada nos néscios cascos dos usurpadores.

credits

released May 10, 2023

Textos & Narração - Bruno Ramos
Composição, edição e mistura - João Clemente

Gravado no Pesinho, Profound Whatever Studio em Abril 2023
Photo de capa de Marco Freire (linktr.ee/randomfreaks)

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